Hariel Revignet está em cartaz com exposição solo na Mitre Galeria (BH)

“Benção, Tché Yazo.” é o nome da exposição da artista de Goiânia Hariel Revignet na Mitre Galeria. “Danadinha! Que moça danada, essa Hariel Revignet - Foi a primeira coisa que exclamei quando entrei na galeria. Não houve conversa, interlocução ou imagens que me fizesse prever o que nos esperava ou o impacto das obras no espaço, suas pinturas-instalações, costuras-amarrações”, conta a curadora, antropóloga e professora Ana Paula Alves Ribeiro.

“Algo que está presente em todas as obras desta exposição é o Zigida ou Sikida, símbolo de riqueza e sensualidade, arma de sedução, fio de contas que fica abaixo do umbigo das mulheres e atrai fertilidade. Vendido em mercados e fazendo parte de várias culturas africanas, o Zigida é também objeto ritual, cujo significado é passado de geração em geração, pelas mãos das mais velhas, e neste caso, da sua avó para a Hariel, a neta”, completa Ana Paula. 

Os Zigidas estão e seguem tecendo caminhos entre as obras, entre o Gabão (origem de Revignet) e o Brasil, entre avó e neta, na relação do pai com a filha, com a terra, entre outras maneiras de estar nos mundos. A solo aberta no sábado (21/10) na Mitre Galeria (BH/MG) é água fresca e cristalina, os cheiros familiares, o farfalhar das folhas, os ruídos dos mercados, um abraço quente e cuidadoso, todo amor e intimidade.

Formada em Arquitetura e Urbanismo pela UFG, Revignet é artista plástica com práticas autobiogeográficas. Seus trabalhos manifestam intersecções sociais a partir do feminismo negro com o foco decolonial afrodiásporico e ameríndio. Trabalha com poesia onírica, performances, colagens e costuras de elementos da natureza como forma de ritualística-tempo-espaços para ativar curas nos corpos astrais. 


Serviço

R. Tenente Brito Melo, 1217, Barro Preto, Belo Horizonte

Terça à sexta, 10h às 19h


Entre Mundos, dentre as águas 

Por Ana Paula Alves Ribeiro 

Hariel Revignet. Artista visual e performer, arquiteta e urbanista. Estas apresentações dão e ao mesmo tempo não dão conta de quem Hariel é e de como suas obras se instauram no campo das artes. Hariel. Mulher de terreiro. Poderia falar que é uma escolha. É mesmo? Brasileira-gabonesa/Gabonesa-brasileira. Por que assim foi feita.  

Falar da obra de Hariel Revignet requer um olhar atento. A sua obra entrega de imediato temas sempre pertinentes e contemporâneos como ancestralidade, cuidado, comunidade, mas ao chegar mais perto percebemos alguns movimentos que nos fogem aos olhos. De perto, suas obras apontam para outras possibilidades de apreensão que estão além das tradicionais e da predominância da visão neste campo artístico. São obras táteis, onde sentir as texturas e imaginar outros caminhos, experienciar, cheirar (enquanto ato) ou sentir cheiros, ativando assim o olfato. Ouvir e perceber o invisível faz parte do seu processo artístico e de investigação. Nada nas obras de Hariel é sem investigação e sem um acurado caminho de escuta, de observação e interlocução com quem habita os vários mundos pelos quais transita. 

É em relação com os diversos mundos que sua arte ganha força, em um diálogo com o sensível, com o sensorial, com o que está posto e com o que se permite mostrar, em um caminho de respeito sendo operado em cada uma das suas obras. Seus trabalhos alcançam grandes escalas e extrapolam o espaço das telas, ganhando paredes, subindo e se esparramando, como raízes em tempo de fixação na terra e no tempo.  

AXÉTETURA 

Este conceito, cunhado por Hariel Revignet em seu trabalho de conclusão de curso, parte das suas investigações sobre o território, mas principalmente sobre seus pertencimentos aos territórios nos quais circula, aos quais pertence. Suas obras tecem, com muito cuidado, algo que é caro tanto às suas formações e diferentes culturas, conhecimentos e formas de saberes:  o que foi aprendido em terreiro, em contato com suas ancestrais, com amigas e parceiras de trabalho artístico, no colo da sua avó. Da mesma forma como na Arquitetura, ou o que apontamos aqui, a própria AXÉTETURA: a materialidade das coisas, e, principalmente, o material utilizado nas suas obras. As obras são entendidas como pintura-instalação, costura-amarração, performances-rituais, poesias-visuais, que honram e respeitam o que o mundo dá e o ciclo espiralar da existência, para além das dualidades ocidentais: humano e não humano, o que vive agora e não viverá daqui a algum tempo, o que reluz e o que se apaga, as sementes e seus frutos.  

“Entre o visível e o invisível, não dá mais para deixar subentendido: As fronteiras imaginadas pelos colonizadores precisam queimar, o que foi construído a partir do que foi roubado precisa ruir. As dívidas precisam ser pagas”, nos sopra Hariel. 

Ela faz parte de uma geração que cresce contracolonial. E ser contracolonial não é apenas um movimento político, é, antes de mais nada, uma condição de existência, de quem nasceu e viveu entre culturas, países e continentes. Decolonialidade, neste movimento de viver e compreender o que significa o lá e o cá, nunca lhe coube. Sabe e também descobre, pelas histórias que lhe são contadas, histórias de travessia neste mundo contemporâneo, de escolhas, de quem se vai e do que (ainda) dói, que só há uma opção - ser contra para viver plenamente, realizar desejos e sonhar, como suas antepassadas, as mulheres dos mercados, aquelas que cruzam com Hariel Revignet nas ruas ou as encantadas que habitam as florestas a ensinaram. Então, como fazer quando essas questões ressoam em nós? Como dar conta do que nos guia e nos impele a voltar à casa e ao colo dos seus e suas? 

No momento em que abre a solo na Mitre Galeria, faltará pouco menos para completar os quase três meses do início de sua viagem. Hariel retorna ao país que foi seu lar, onde está parte da sua família e sua história, a República Gabonesa ou Gabão, na África Central. Intuía ser fundamental voltar ao país após quase duas décadas sem lá pisar, de um afastamento não intencional, com o desejo de rever seu pai, sua avó, seguir rastros da menina que ela era quando saiu do país aos dez/onze anos e reencontrar memórias do seu passado, mas também do seu futuro. Hariel, que nasceu em Goiânia/Goiás, filha de um casamento entre uma brasileira e um gabonense que havia migrado para o Brasil para estudar e, então, voltar à sua terra e à sua família, faz o mesmo movimento que o pai realizou na década anterior. Retorna à casa, aquela que não está aqui, mas está lá, em África.  

Voltar à casa, e voltar à casa significa voltar à terra: voltar a outros modos de habitar, vestir, comer, pensar, trabalhar, crer e amar. Tché Yazo. Nossa terra. 

O retorno também parte do desejo de Hariel, agora adulta, em compreender seus chamados, cosmovisões mais afrocentradas em seu outro lar, fora do processo da diáspora. Parte da tentativa de compreender o que seguia ressoando em seus trabalhos, na interlocução constante com seu pai e na relação de afeto, parceria e respeito que foram reconstruindo após suas perdas, afastados em dois continentes, mas sabendo pertencer ao mesmo chão. Aqui este retorno diz também respeito a sua arte, a sua construção investigativa que, em diálogo com a encantaria indígena e em uma construção autobiogeográfica, tenta ofertar neste movimento o que do Gabão e da sua família seguia com ela e em suas pinturas. 

As obras: 

As obras de Hariel se inscrevem no campo da pintura figurativa, onde nas últimas décadas temos percebido uma maior entrada de artistas negras e negros em galerias e museus.  Aqui, o debate não se restringe, e na realidade vai além  das formas como pessoas negras eram e ou são representadas. Estamos falando da circulação de artistas que optam ou têm permissão de narrar histórias e construir suas próprias imagens e obras em diálogo, mas não necessariamente, com a existência negra. São imagens de si, imagens de amor, imagens políticas, imagens rituais. Imagens de pertencimento, de intimidade, de cuidado. Imagens e histórias que curam, que amarram, que convidam. Ao mesmo tempo, fazendo parte deste cenário, Hariel aciona em suas obras referências e imagens de outras artistas, como Rosana Paulino (BR) ou Betye Saar (EUA). Também em seus quadros, Hariel se inscreve no movimento de trabalhar a partir do que viu/percebeu e registrou nas suas fotografias nos mercados, das pessoas e das suas rotinas, da arte têxtil e das roupas vendidas e usadas pelas mulheres. Do movimento das ruas e dos símbolos entalhados em portões e que dialogam com o que está no corpo e na forma de estar no mundo. Em uma constelação de referências destes artistas locais e de tantas outras guias que, estando lá, são também seus e suas e na relação de pertencimento. São registros da sua comunidade, da nossa comunidade. Aqui não estamos falando de representações, repito. São construções afetivo-familiares e políticas da sua casa, de sua terra.  

Das obras anteriores temos a presença de cenas, em dípticos e trípticos, que narram cenas e histórias. Há uma reconexão com a matripotência e seus papéis em mercados, nas famílias, nas ruas, na comunicação cotidiana. Da compreensão dos papéis das mulheres em sociedades africanas, em chaves de leitura muito diferentes das Ocidentais. Permanecem ainda a paleta das tintas utilizadas, em tons terrosos e suas variações. Aqui, em algumas obras, em cores mais alaranjadas e na presença do amarelo ouro, amarelo Oxum, amarelo fartura, amarelo de vida e segredo feminino. Também das obras anteriores, a compreensão da vida em todas as suas dimensões e fluxos, não hierarquizando os elementos de suas pinturas-instalações ou desta costura-amarração feita dentro das obras e entre as obras. Todos os elementos são fundamentais: o que é pintado e o que é permitido ser mostrado, assim como cascas, raízes, sementes, folhas, fios.  

Algo que está presente em todas as obras desta exposição é o Zigida ou Sikida, símbolo de riqueza e sensualidade, arma de sedução, fio de contas que fica abaixo do umbigo das mulheres e atrai fertilidade. Vendido em mercados e fazendo parte de várias culturas africanas, o Zigida é também objeto ritual, cujo significado é passado de geração em geração, pelas mãos das mais velhas, e neste caso, da sua avó para a Hariel, a neta.  

Aqui também há uma forte referência das imagens fotográficas, de imagens de fotógrafas e fotógrafos africanos, mas também da dimensão da intimidade daquela que retorna para casa e monta seu álbum: a floresta, a casa e suas imagens de intimidade: os abraços, os sussurros e segredos, o mercado e suas trocas, as mulheres que o movimentam e lhes dá vida, as ruas e quem as habita. Imagens que são permitidas registrar e posteriormente pintar. O álbum público desta viagem de retorno, agora partilhada. 

Retornar:  

A Floresta - Igâ 

[Painel Tríptico] 

Atravessar a floresta e percebê-la em fragmentos faz parte do rito de passagem, do seu rito de passagem e de retorno ao lar. Não se chega a casa e ao coração do lar - a avó - se não passar pela floresta. É quem cuida para que este retorno seja permitido e que Hariel criança se mostra adulta e pronta para receber parte do seu legado. Frente a um mundo de intensa complexidade, a floresta é cuidado, é casa antes da casa, é o que firma e atravessa na certeza dos tempos. No painel central, uma mulher com uma folha nos olha atenta, nos escutando e se fazendo ouvida. É na Floresta que se revela o que se pode ou não. Ver ou mostrar. Saber e contar. É permissão. A Floresta é Benção.  

A Casa Nago em Myènè 

[Painel único] 

Nossa família. A casa de sua avó e de seu pai deixam de ser deles neste processo de retorno e passam a ser também de Hariel. Como é um abraço de avó há tanto tempo não dado, quase esquecido? É no colo da avó que Hariel re-aprende a ser filha daquela terra. É no colo da avó, em seu abraço e nos olhares cúmplices que entende ser sim, família. Na obra, avó e neta estão vestidas e ornadas com roupas e jóias que dizem: ‘Somos daqui. Fazemos parte’. Ambas estão com os pés nas águas, águas que dividem e partilham os dois continentes que habitam. Água que é memória e o que não se acaba, não se esquece. A água dos segredos femininos. Dos rios de Oxum, como o amarelo ouro que predomina na obra. No canto inferior direito, uma tartaruga. Ancestralidade, senioridade, longevidade, memória e proteção, passadas de avó para neta. Nas mãos da avó, o Zigida, que atravessa as águas e as une. 

Gi’kassa, o mercado 

[Painel Tríptico] 

Impossível pensar as Áfricas e os países que fazem parte da afrodiáspora sem falar dos mercados e da sua fundamental importância comunitária, econômica, das redes de circulação e convivência. Não se chega em um mercado sem disposição para trocar, aprendemos. É ali, no mercado, que estão a sombra três mulheres. Em suas funções, suas expressões corporais, suas cabeças e seus trançados, o que se esconde e o que se mostra, tudo tem significado. Em suas roupas, as estampas e a produção da arte têxtil reproduzem búzios, flores e folhas. Nas pinturas, enquanto cena, o que produzem e como estão em evidência. Lugar de abundância, os mercados são também lugares de energias firmadas, de encantaria, de poder espiritual (consciente e inconsciente), do que se pede e o que se dá, do que se leva para casa ou se guarda consigo. É no mercado que as relações mais públicas estão postas, em eterno movimento e gira.  

rua Mponô 

[Quatro painéis] 

A rua é a última (e talvez a primeira) coisa que se vê. É o processo de despedida ou um até breve. Entre o movimento de chegar e partir, se abismar e re-conhecer os portões das moradas, suas ocupantes, as telas apontam caminhos para pensar moradias e habitações, mas principalmente, o poder das ruas. Pintar as ruas é agradecer a quem permitiu chegar até ali, quem permitiu e permite diariamente trilhar nossos caminhos, os cotidianos e os da vida. Passar pela rua e pensar as ruas também significa reconhecer as portas como portais, como portões, sempre mágicos: é o que guarda, protege, vigia. É o que cuida, da porta para dentro e da porta pra fora, e tão significativo pois também possibilitam contar histórias, em cada entalhe, em cada cor pensada, em cada ação do tempo, em cada símbolo, como estética e mensagem para desavisados ou iniciados. A obra que encerra a exposição é um convite para que nos lembremos o que Hariel nos mostra a partir deste retorno: o que é permitido falar e contar e como. Com proteção. Sua benção.  

Referências: 

Conversa com Hariel Revignet, por Ana Paula Alves Ribeiro. Goiânia-Rio de Janeiro, 29 de setembro de 2023. 

OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ. A invenção das mulheres: Construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero. Tradução: wanderson flor do nascimento. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021 

PAULINO, Rosana. Rosana Paulino: A costura da memória. Catálogo. Exposição Pinacoteca, 2018. 

PORTFÓLIO HARIEL REVIGNET, 2023. 

SOMÉ, Sobonfu. O espírito da intimidade: Ensinamentos ancestrais africanos sobre maneiras de se relacionar. Tradução: Deborah Weinberg. São Paulo: Coysseus, 2018.



Sobre a Mitre

Belo Horizonte, Joanesburgo, Cidade do Cabo, São Paulo, Nova York, Liverpool. A primeira metade do ano foi intensa para a Mitre Galeria, que consolidou seu espaço não só como uma das principais galerias de Belo Horizonte, mas também do país. 

2023 começou com uma mudança de nome e posicionamento. Antes Periscópio, a Mitre inaugurou duas exposições na galeria no Bairro Preto, a primeira, coletiva MAA, uma bela síntese de sua nova proposta. Já a segunda, foi com o artista sul africano Jabulani, em uma parceria com a galeria Goodman Gallery, da Cidade do Cabo. 

Depois de uma feliz participação na SP Arte, fez história em Nova York como a primeira galeria de Minas Gerais a participar da Frieze, uma das principais feiras de arte do mundo. Por lá, mostrou o trabalho do artista Marcos Siqueira que foi destaque em diversas publicações, entre elas o jornal New York Times. De Nova York para Liverpool, onde Isa do Rosário, artista representada pela galeria, integrou o time de artistas da 12ª edição da Liverpool Biennial of Contemporary Art, na Inglaterra. 

O segundo semestre começou com boas notícias, com a artista mineira Luana Vitra, também representada pela galeria, sendo uma das ganhadoras do Prêmio Pipa e selecionada para a Bienal de SP. 

Agosto seguiu em ritmo acelerado com a abertura da exposição individual do artista Wallace Pato. A Mitre Galeria também participou para a 2a edição do SP Arte - Rotas Brasileiras.





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